Garotas do ABC é o aperfeiçoamento
de um antigo projeto de produção: "Sonhos de Vida" e "Vida
de Sonhos". Seriam dois filmes a serem realizados simultaneamente, com
os mesmos personagens e locações, incluindo um clube operário
e uma indústria têxtil da região do ABC de São Paulo. "Sonhos
de Vida" seria um filme sobre o trabalho, enquanto "Vida
de Sonhos" falaria do tempo livre como o verdadeiro espaço de liberdade
e valorização do ser humano.
Na sua gênese, o intuito desse projeto era dar seqüência ao mergulho pessoal no meu imaginário a respeito do universo feminino submetido a brutalização social da periferia de São Paulo; tema que já aparecia esboçado em filmes como Lilian M., Relatório Confidencial (1974), Amor Palavra Prostituta (1980), e melhor desenvolvido em Anjos do Arrabalde (1987).
Com o tempo (o primeiro esboço dos dois filmes surgiu em 1987), fui me interessando cada vez mais em dar vida própria a cada uma das personagens principais de Sonhos de Vida e Vida de Sonhos, chegando a pensar na realização de seis filmes de longa-metragem com cenários e personagens se revezando de um para outro. Seis filmes de gêneros diferentes, seis visões originais da realidade brasileira, seis crônicas urbanas, passíveis de serem posteriormente editadas no formato de série de 13 capítulos para a televisão. Esse projeto atrevido recebeu o nome de ABC - Clube Democrático (Garotas do ABC) e confesso que ele tomou corpo na minha cabeça após a visão de Berlin Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder.
Mais que as relações de trabalho, me interessou flagrar o cotidiano de personagens submetidas à hostilidade de seu meio social.
As
seis personagens-título: Aurélia, a
linda negra que é fã de Arnold e namora um neonazista;
Paula Nélson, a mais competente do grupo, uma espécie de mãezona
que tem problemas sérios em se relacionar com os homens; Antuérpia,
a mais nova das funcionarias embora a mais velha do grupo, que tenta desesperadamente
recuperar o filho legalmente "seqüestrado" por sua rica e poderosa
sogra; Lucineide, a mais sensual e desinibida de todas, a rainha do Clube Democrático,
que, incons-cientemente, flerta com a prostituição; Suzana (Suzy
Di) uma casta tecelã que perde partes de seu lindo e frágil corpo
por amor ao trabalho e ao patrão. E, finalmente, Arlete, a doce porralouca
que sai da Febem masculinizada e aprende a amar os homens a partir de seu contato
com os teares. Arlete seria a única personagem que aparecia num único
filme; todas as demais se revezariam em aparições constantes
em todos os filmes.
Outras cinco personagens, fariam parte permanente do universo de ABC - Clube Democrático: Marcinha Zarolha, Kinuyo Sugawa, a menor de idade Nelinha, a negra e sorridente Indalércia, e Nair, uma tecelã extraordinária com uma outra - e a mais antiga - profissão.
Vários
outros personagens masculinos trafegariam por todos os filmes: o velho jornalista
Nélson Torres (uma espécie de coringa do projeto), o delegado
new-age Oswaldo Sampaio, o sindicalista safo André Luiz Oliveira, a
advogada trabalhista Dra. Andréia Tonacci, o simpatizante anarquista
e dono do último cinema de Diadema, Paulo Emílio Sales, o pintor
naif furioso e esclerosado Gonçalo Pesqueira, o corrupto advogado Ivangilson
Vargas, o industrial têxtil que está saindo da concordata Dr.
Mazini, o metalúrgico romântico e órfico Inácio
Araújo, o ídolo musical Bruno de André, a rigorosa supervisora
de seção Maria do Carmo, o incendiário Antero (pai de
Lucineide), o cineasta participante Éder Mazini, o militar e irmão
de Aurélia (Adílson-Didão), a alcoólatra e feiticeira
Sofia, o justiceiro Maleita, a neófita e cruel jovem empresária
Berenice Mazini, e, entre outros, Linda, a mulher mais linda do país.
Quem for ver Garotas do ABC vai reconhecer vários destes personagens.
Um expediente que tornou a tarefa da escritura mais saborosa foi ter nomeado alguns personagens com o nome de meus amigos mais próximos. Isso tornou o trabalho um deleite, já que estes amigos são o reverso da personalidade dos personagens.
Em 1995, fui contemplado com a Bolsa Vitae de Artes para escrever quatro dos roteiros da série, em 14 meses. Em janeiro de 1997, entreguei os quatro roteiros - em seu primeiro tratamento: Aurélia Schwarzenêga, Anjo Frágil Antuérpia, Lucineide Falsa Loura e A Fiel Operária Suzy Di.
Naquele período pude me aprofundar na pesquisa do universo da mulher tecelã. Nunca pretendi realizar com esses filmes um tratado sociológico sobre o assunto, mas trabalhar o meu imaginário a respeito do universo feminino submetido às perversões do progresso desordenado e caótico que caracterizam regiões surgidas à margem da industrialização acelerada. Como bem analisa o cineasta japonês Shohei Imamura, a classe média baixa, o semi-lúmpen, pode ser enxergada como a sociedade do umbigo. É esta casta que às vezes me leva a pensar filmes e com a qual sempre se interessei em dialogar através dos meus filmes.
Durante o período que esbocei os quatro roteiros percorri todos os cenários que tinha em mente, conversando com operárias, policiais, ocupantes de terrenos irregulares, sindicalistas, advogados trabalhistas, etc. E a mais prolífica das estratégias foi andar muito de ônibus, uma fonte inesgotável de descobertas sobre paixões, frustrações, ansiedades, expectativas e mesmo a ideologia das jovens mulheres do ABC. A maioria dos diálogos entre as personagens femininas dos seis filmes são reproduções retrabalhadas do que eu ouviu nessas errâncias.
É claro que fui obrigado a desistir da idéia de rodar os seis filmes simultaneamente. Depois que resolvermos centrar esforços para filmar o "piloto" da série, "Aurélia Schwarzenega, eu e a minha sócia, a produtora Sara Silveira, levamos cinco anos para captar o dinheiro para produzi-lo.
No final do que considerei o primeiro corte definitivo de Aurélia Schwarzenega, ficamos com um filme de quase três horas. Mandamos três fitas de vídeo para a Europa e consultamos dois produtores estrangeiros amigos nossos. Nenhum deles queria ficar com um filme de três horas. Pior, na opinião deles quem "roubava" o filme eram os personagens masculinos, em especial, os ignóbeis neonazistas. Voltei para a ilha de edição e após uma longa conversa com a montadora Cristina Amaral, minha maior cúmplice, decidimos cortar as cenas dos neonazistas pela metade e diminuir o peso das costas da protagonista Aurélia. De certa maneira, depois destes cortes o filme retomou as características de seu projeto original "Sonhos de Vida" e "Vida de Sonhos". Nos seus atuais 125 minutos, contados os letreiros finais, Aurélia divide a atenção com sua família inteira e, particularmente, três de suas colegas: Paula Nélson, Antuérpia e Suzana. Por isso a mudança de nome. Desistimos de chamá-lo Aurélia Schwarzenega porque este filme não é mais centrado numa única personagem mas no coletivo da família negra, do local de trabalho e do clube operário.
O
elenco deste filme foi escolhido depois de vários testes. No início, pensei em convidar duas atrizes conhecidas para os papéis
de Aurélia e Paula Nélson. Como levamos cinco anos para captar recursos
financeiros as atrizes já me pareciam aquém da idade dos personagens
imaginados. Por outro lado, na pré-produção, resolvi fugir
definitivamente da identificação instantânea do público
com as atrizes-tecelãs. Para as protagonistas centrais fomos atrás
de rostos absolutamente desconhecidos. Michelle Valle, a nossa Aurélia,
fez mais de cinco testes diferentes e eu acabei selecionando ela por um sorriso
casual e espontâneo no segundo teste. Ela ficou meses sendo treinada pela "coach" Fátima
Toledo e trabalhou arduamente com a coreógrafa Luciana Brittes e a fonoaudióloga
Fátima Marques Leite. Assim como as demais atrizes, passou por um aprendizado
rigoroso de como lidar com os teares. Natália Lorda, a Paula Nélson,
veio de uma das melhores turmas recém-formadas pela Escola de Arte Dramática. É uma
atriz exuberante e sensível. Foi ela quem preparou Renan Augusto, o
jovem protagonista de Bens Confiscados, o filme que acabamos de realizar
em co-produção com a atriz Betty Faria. Para interpretar Suzana
descobrimos Luciele di Camargo, a irmã caçula de Zezé e
Luciano; essa garota parece ter nascido com uma lente 50 milímetros colado
no rosto; é daqueles casos raros de "cinegenia absoluta" e,
como bem observou o diretor mexicano Carlos Bolado, é a versão
brasileira de Salma Hayek. Para interpretar Antuérpia, chamei a atriz
que mais filmou comigo, Vanessa Alves, e que ganhou vários prêmios
por seu papel em "Anjos do Arrabalde". Na verdade, inventei o personagem
Antuérpia pensando desde o início (1987) na atriz. Vanessa Alves
e Ênio Gonçalves são atores que me facilitam a vida porque
estão acostumados ao meu repertório, entendem o que eu peço
em uma palavra ou olhar. O mesmo eu posso dizer da impagável Vanessa Goulart.
Seu personagem, Marcinha Caolha, nasceu das palhaçadas que ela fazia nas
filmagens de "Dois Córregos", onde foi a protagonista, imitando
a equipe inteira. O que ela faz com os olhos é um acinte! Ela sempre que
aparece rouba a cena; isso, inclusive, nos obrigou a reduzir sua presença
no corte final. Duas atrizes que eu testei e imaginei para Bens Confiscados,
acabei convocando para Garotas do ABC : Márcia de Oliveira (Nelinha)
e Fernanda Carvalho Leite (Suzana). Achei que seria a melhor maneira de nos habituarmos
a trabalhar juntos: Estão perfeitas em Garotas do ABC, mas
estão
extraordinárias em Bens Confiscados. São duas atrizes
sensacionais com quem quero voltar a fazer vários filmes. Lina Agifu (Kinuyo)
e Kelly Bertholi (Nair) são dedicadas atrizes de teatro que muito me ajudaram
no período que lecionei no curso de cinema da Escola de Comunicações
e Artes, da USP. Durante três anos elas participaram dos exercícios
dos meus alunos. Kelly, inclusive, é formada pelo Centro de Artes Cênicas,
da USP, e trabalha hoje com a preparadora de elenco, Fátima Toledo. Lina
estava fazendo curso de teatro em Londres quando fui chamá-la para o filme.
Ela já havia participado de "Dois Córregos"; tentamos
demovê-la da idéia de voltar ao Brasil, mas ela veio por conta e
risco. Finalmente, falta falar de Viviane Porto, uma atriz extraordinária
que chamei para interpretar Indalércia, na última hora, pela semelhança
de seu corpo com o da Aurélia escolhida. O curioso é que o motivo
da escolha acabou caindo fora na montagem final. No entanto, Viviane me fez aumentar
o seu personagem durante as filmagens por conta e graça de seu empenho
e dedicação e, sobretudo, pelo seu carisma.
Uma das grandes curiosidades ocorridas no processo de pesquisa no ABC,
durante o período das Bolsas Vitae, que obrigou a mim e ao maestro Nelson
Ayres a encontrar uma solução ardilosa e brasileira foi descobrir
em Marvin Gaye (o falecido ídolo americano da musica soul) o caminho
para entender o universo de sonhos, ambições profissionais e
amores do grupo social que desejava retratar: a operária negra. Tentamos,
durante todo o período de pré-produção, comprar
os direitos de dois sucessos do ídolo maior da lendária gravadora
Motown para incluir na trilha sonora. Sua editora e gravadora nos Estados Unidos
não se dignou nem em estipular valores, tratando a produtora executiva
Maria Ionescu com a arrogância do silêncio. Mais uma vez tivemos
que elaborar uma solução emergencial. Ouvindo casualmente um
dos cds que acompanham a revista inglesa Future Music, que eu assinava na época,
fiquei fascinado com o grupo inglês Subverse, que recuperou a beleza
dos timbres dos tradicionais órgãos Hammond (o mesmo timbre típico
do anos 60, que tentei reproduzir em "Alma Corsária") e então,
eu tive a idéia. Liguei para o Nelson Ayres e pedi para ele inventar
SAM RAY: "o papa do soul" e mago dos órgãos Hammond.
Ayres chamou Marcos Levy, o Xuxa, o tecladista e arranjador de Paula Lima,
apaixonado por Marvin Gaye, e ambos fizeram surgir o ídolo de Aurélia
e de todas as operárias negras do ABC. Sam Ray só aparece em
cartazes e capas de disco na casa de Aurélia e de suas colegas de fábrica.
Suas feições são as do diretor de produção,
e querido amigo, Rui Pires, fotografado de todos os ângulos possíveis
ao lado de um belo teclado Hammond. Em tempo: Sam Ray é uma homenagem
explícita a dois de meus diretores favoritos, Samuel Fuller e Nicholas
Ray.
Para as cenas da fábrica foi preciso achar uma solução "bárbara
e nossa", já que reproduzir uma antiga tecelagem em estúdio
ficaria muito caro. A produção localizou a tradicional fábrica
de cobertores Tognato, em São Bernardo, que estava desativada e que,
por acaso, ficava há duas quadras da Vera Cruz. Era o local perfeito.
Tivemos que consertar algumas máquinas, pois muitas não funcionavam
mais. O diretor de arte Luís Rossi e sua equipe construiram o mezanino
onde a supervisora Carmo fiscaliza o galpão inteiro. Para minimizar
a cor soturna do ambiente, Rossi deu preferência a tecidos azuis e amarelos
manipulados pelos teares.
No começo das filmagens da homenagem explícita a Glauber Rocha - a seqüência em que Maleita "executa" dois dos neonazistas - o ator Alessandro Azevedo me mostrou a oração original com que Lampião "encomendava" as almas de seus desafetos. É claro que incorporamos a sugestão imediatamente.
Uma das minhas maiores surpresas durante as filmagens foi a descoberta
gradativa da influência inconsciente de Fritz Lang na construção
da mise-en-scène de Garotas do ABC. Cada remessa de material
telecinado do que havia sido filmado dois dias antes, que eu recebia para conferência
(hoje não se fazem mais copiões em 35mm, mas uma cópia
em VHS das cenas rodadas), eu me surpreendia descobrindo referências
explícitas a filmes como "Dr. Mabuse, o Jogador", "Vive-se
Só Uma Vez", "O Homem Que Quis Matar Hitler", "Quando
Descem As Trevas", "Os Mil Olhos do Dr. Mabuse" e, sobretudo, "M.,
o Vampiro de Dusseldorf", todos de Lang.
Quando Ivan Lins, que iria fazer uma participação afetiva interpretando o Dr. Mazini, diretor da tecelagem, precisou fazer uma cirurgia odontológica, me lembrei de Lang e resolvi entrar em cena apenas com as minhas mãos e silhueta. Em todos os filmes de Fritz Lang tem um plano das mãos do genial diretor.